sábado, 2 de novembro de 2024

Sagres


Há lugares no mundo que deixam uma marca profunda na nossa alma, Sagres sempre me fascinou, foram inúmeras as vezes que a visitei por terra, só ou acompanhado, o promontório e o cabo "onde termina o mundo", este sempre foi um local quase místico. Aliás para os povos da antiguidade era mesmo um lugar místico. Os Celtas chamaram-lhe o promontório dos Deuses. Outros povos achavam que era ali que o mundo terminava, era ali que começava o mar das trevas.

O Infante mudou tudo isso, mas a mística ficou agarrada àquelas pedras de forma indelével. Em todo o lado sente-se o peso da história, nas muralhas, nas velhas caraças dos canhões gastas pelos anos e pelo salitre, nas paredes do velho templo, na misteriosa rosa dos ventos, nas furnas que descem até ao mar pelo ventre da terra.

Mais a oeste vislumbra-se o cabo de S. Vicente com o seu farol, o ponto mais a sudoeste da Europa, a ponta do velho Continente que aponta para o Novo Mundo, entre ambos uma enseada com vários recantos e um charmoso Castelo hoje transformado numa unidade turística.

Mas nada do que se vê de terra é mais esmagador que a vista a partir do mar! A primeira vez que admirei esta paisagem a partir do reino de Neptuno, foi a bordo do paquete Funchal. Ainda hoje, passados 35 anos, revejo esse momento com uma claridade cristalina. Estávamos a jantar, pelas janelas comecei a ver desfilar a praia da Bordeira, depois o Castelejo, não esperei mais, saí para o convés e debrucei-me na amurada. Ouvia-se Wagner, os penhascos erguiam-se altivos, deslumbrantes à luz do pôr do sol, o navio aproximou-se tanto como as regras de segurança permitiam, deixando os mais pequenos pormenores ficarem expostos aos meus olhos.

Aos poucos fomos contornando o cabo de São Vicente e dirigindo-nos para Sagres, Wagner continuava a tocar pelas colunas do navio, olhei à minha volta, estava só contemplando a mais bela paisagem que jamais vira.

Dias antes tinha visto um rosto que também havia marcado a minha alma, tinha aparecido e depois perdera-se na multidão que preenche as ruas nas noites estivais de Lagos. Receei não mais voltar a rever tão marcantes imagens. Fiquei por ali, a noite caiu fiquei apreciando as luzes do Algarve: Burgau, Luz, Lagos, Alvor, Portimão…

Perguntei-me se voltaria a ver Sagres do mar… e aquele rosto lindo de morrer. Voltei para Lagos procurei-a, não mais a vi.

16 anos depois voltei a cruzar aquelas águas, desta vez no meu pequeno veleiro, voltei a procurar aquele rosto fugidio no meio da multidão. Sagres vista do mar voltou a mostrar-se em todo o seu esplendor num mar estanhado, lá em cima pareceu-me vê-la! Toquei a sirene, abanei freneticamente os braços... Não. Não era ela, tenho agora a certeza.

Passaram outros 16 anos, olhando para um quadro de fotos em casa de alguém que conhecera há poucos dias, volto a rever aquele rosto fugidio! Aquela cujo rosto para sempre ficou gravado na minha alma como as imagens daqueles rochedos imponentes.

Redijo estas linhas a seu lado, contemplo o seu rosto sereno e belo. A noite vai adiantada, não tarda estarei abraçado a ela no nosso leito, sonhando com uma viagem a seu lado contemplado aquela paisagem divina uma vez mais.


Fiquem bem no lado escuro da Lua.





domingo, 27 de outubro de 2024

Regatta de Blanc


Músicas: Regatta de Blanc – The Police; Mysterious Ways - U2

 


Imponente, a Catedral de Palma de Maiorca, domina as vistas. A altura das suas torres, as mais altas de Espanha, desafiam o facto de estarmos numa ilha.

Por todo o lado há alguém a tentar vender algo, quadros, malas, sapatos, recuerdos… também há artistas de rua, que fazem pinturas, performances, homens/mulheres estátuas e o estranho casal que levita numa armação bem disfarçada. Houve-se uma viola tocando o concerto de Aranjuez, o sol é abrasador, apesar dos jactos de água que caem no lago que fica no sopé da catedral o calor torna-se pesado enquanto o sol procura a sua posição mais alta, como que para ver melhor todo o esplendor que se estende por baixo.

Uma brisa levanta-se, embala as folhas das palmeiras que alegres fazem coro aos acordes da viola do virtuoso artista de rua que a dedilha alegremente.

Ao virar de uma esquina os olhos preparam-se para abraçar o mar, quando uma figura enigmática rompe a paisagem chamando a si as atenções.

Agarrando a larga borda azul do chapéu que o vento tenta em vão retirar para descobrir o seu rosto sereno, deixando o alvo vestido ondular ao sabor deste, ora mostrando ora ocultando as suas formas perfeitas. Pequenas rendas orlam as extermidades das curtas mangas, como se brancos lírios lhe ornamentassem os braços firmes e maduros.

Olha fixamente para o Mar, não se deixando distrair com as mundanas figuras que cruzam a rua.  Por momentos o tempo pára, tudo fica estático, congelado. Apenas ela continua a mover-se naquela forma misteriosa, ondulando como o vento, provocando um pesado suspiro de paixão.

O roxo das Buganvílias contrasta com o verde e o amarelo dominantes, traçando um friso colorido no topo do muro desta casa com singelas varandas e venezianas verdes.

As palmeiras omnipresentes compõem a moldura muito acima das luminárias que quase passam despercebidas. Ali numa muito camuflada esquina uma cascata de belas flores azuis vai descendo pela trepadeira que cobre por completo o muro que delimita a propriedade e dá suporte ao socalco que aplainou o espaço onde esta moradia se ergue.

O calor continua opressor, pesado e húmido, convidando a uma paragem para refrescar.


 Que melhor local para fugir à canícula que a Plaça de la Feixina, com os seus lagos e cascatas, sempre com a água correndo, mergulhando aqui e ali debaixo das pedras do passeio, para surgir uns metros à frente mais fresca.

As amplas sombras do arvoredo auxiliam no arrefecimento, enquanto acenam para a água embaladas pela aragem que atravessa a ilha de norte para sul.

Convidando a uma paragem para descansar as pernas e arrefecer os músculos enquanto se contempla o escoar do tempo na sombra do relógio de sol, ali instalado numa das faces de pirâmide de pedra, noutra surge um enigmático relógio de lua, com a sua tabela de legenda e descodificação.

Os muros do castelo opõem-se à linha das palmeiras deixando no seu regaço um largo passeio de pedra.

Ali surge novamente a bela silhueta alva, agora dança, alegre, feliz, deslumbrante. Rodopia de braços abertos abraçando o vento numa valsa ensurdecedora de silencio. Baila com o calor e com as gotas de humidade que pairam pelo ar arrastadas desde as cascadas pela suave brisa estival.

Continua misteriosa a forma como se move, como dança, como caminha. A harmonia instala-se, todo o quadro ganha uma formosura singular, até a catedral estica as suas torres por entre as palmeiras para observar este pitoresco panorama em movimento, esta poesia silenciosa e serena.

Abraço a beleza do quadro e regresso ao navio, sou um marinheiro, um homem do mar, apaixonado pela doce silhueta alva que misteriosamente se movimentava, ora caminhando, ora dançando.

Contemplo a linha do casario que se estende entre as verdes colinas e o azul do mar, a multitude de embarcações que descansam na grande marina, os paquetes luxuosos que preparam a partida para o alto mar.

Tudo parece pacífico, sereno, nem o vento se sente agora.

Sinto uns braços a me envolver, um doce perfume invade-me as narinas e o doce som de uma voz faz-me estremecer.

Lentamente viro-me, perante mim está a delicada figura alva com que me cruzei uma e outra vez durante o dia.

A noite caiu, não sentimos o sol esgueirar-se sob as ondas distantes, inebriados pelo tão inesperado como anunciado encontro. Os nossos olhares não se desviaram durante as longas horas em que o glorioso astro atravessou os céus.


Fiquem bem no lado escuro da Lua.