segunda-feira, 21 de março de 2016

O Sonho da Tangerina


Era uma noite de Março ou Abril de 1979, como era habitual enquanto a restante família ficava a ver o programa da noite do 1º Canal da RTP (o único canal que se conseguia ver em Lagos nessa altura), eu estava sentado num canto da sala, junto à aparelhagem AIWA, tinha recebido como prenda de aniversário uns auscultadores e as minhas soirés eram passadas a ouvir a rádio - A rádio comercial FM estéreo.

À noite passava um programa (não me recordo o nome) onde tocavam discos na integra, quase sempre de Rock Progressivo, que não perdia por nada. Naquela noite o locutor anunciou o álbum Force Majeure dos Tangerine Dream.

Os acordes iniciais fantasmagóricos captaram-me imediatamente a atenção, bips cortavam um fundo musical denso, pesado, todo à base de sintetizadores, que deambulava de um ouvido para o outro... uma viola baixo ressoa compassadamente, depois um piano faz-se ouvir e a melodia explode numa cascata de sintetizadores, sequencers que vão alternado ritmos, com uma viola eléctrica e depois duas a desenhar acordes surreais.

Fiquei em êxtase, a música atinge novo andamento agora as violas, fazem a base para um sintetizador lançar-nos como que numa corrida, faz-se ouvir uma bateria, a música acelera até um anticlimax cortado pelo som de um comboio - pouca terra, pouca terra. Entramos numa espécie de ciclone sonoro, o vento sopra acompanhando a viola eléctrica.

Um gongo marca novo andamento, com um sintetizador que lembra as gotas de água de uma chuva primaveril, preparando a entrada para a parte mais mística e melodiosa da música, apenas com sintetizadores somos embalados até um novo andamento, mais mecânico, mais opressivo, mas igualmente belo, que nos catapulta para um final pesado.

Estava esmagado pela primeira música, depois uma viola acústica sobrepõe-se a um sintetizador marcando os primeiros acordes de Cloudburst Flight transitando para um sintetizador que nos eleva para além das nuvens, começando uma viagem vertiginosa por um universo musical como transportados por um foguetão lunar. A viola eléctrica amplifica a sensação de uma tempestade contra a qual chocamos à velocidade do som.

Thru Metamorphic Rocks, rodopiamos num remoinho que nos puxa inexoravelmente para o fundo de um oceano de sons. De repente o sol rompe no meio das nuvens transportado por uma viola, estamos de volta à superfície, exaustos, contemplamos o céu, quando de repente aparecem nuvens escuras! Relâmpagos riscam os céus, os mares agitam-se, as ondas começam a rebentar à nossa volta, ouvem-se trombetas, o oceano de som continua agitado, sentimos a força das pesadas ondas de som que explodem contra nós, fantasmas gemem à nossa volta, a tormenta continua mais pesada, mais pesada ainda, os gemidos aumentam de intensidade.

Estamos exaustos mas não conseguimos desligar, a música está no clímax, a qualquer momento parece que a nau onde enfrentamos a fúria desta tempestade musical vai desintegrar-se, por fim afasta-se... lentamente afasta-se deixando-nos respirar... por fim o silêncio, um longo silêncio de 5 segundos que parecem anos...

As memórias terminam aqui, apenas mais uma, no dia seguinte na loja Disco de Ouro - aguardo com ansiedade que o pai da Marisa me traga o vinil, nem peço para ouvir como sempre fazia. Agarro-o firmemente e corro para casa. Durante dias ouvi-o e voltei a ouvi-lo. Ainda hoje sinto um arrepio e termino a sua audição quase exausto.

Fiquem bem no lado escuro da lua.